A versátil Tinta Negra

É a casta mais comum no Vinho Madeira e alvo de uma aposta cada vez maior dos enólogos e produtores.

 

 

 
Numa simples análise estatística depressa se conclui que a maior parte do Vinho Madeira não é feita de Sercial, Verdelho, Malvasia, Bual, nem sequer de Terrantez nem Moscatel. O maior volume é produzido com os 5 milhões de quilos de uvas produzidas anualmente na Madeira, a partir da casta Tinta Negra, ou seja, 85 por cento da produção.
 
Praticamente todas as misturas têm, ou costumavam ter, a Tinta Negra como base. A sua película mais espessa e resistente é mais vigorosa e tem rendimentos elevados, o que permite criar os quatro estilos de Madeira: doce, meio-doce, meio-seco e seco.
 
É uma casta pouco reconhecida, a tal ponto que nem era possível, por lei, exibi-la nos rótulos. Só a partir da década de 90 se começa a falar em Tinta Negra com menos vergonha. Juan Teixeira, enólogo da Justino’s Madeira Wine, explica que “as pessoas pensavam que era uma casta má, destinada aos vinhos vendidos a granel e aos vinhos de entrada de gama”, que no caso do Madeira corresponde aos vinhos de três e cinco anos. Além disso estava associada à utilização na culinária.

Enólogos e produtores decidiram questionar a tradição e lançaram mãos ao trabalho, em explorar o potencial desta casta, produzindo vinhos de qualidade superior. Vinhos Barbeito, Madeira Wine Company e Justino’s Madeira Wine têm trabalhado para dar outra visibilidade à Tinta Negra.

Ricardo Diogo, enólogo da Barbeiro, começou a olhar para esta casta de outro modo em 1995: “Iniciei o seu envelhecimento pelo método tradicional de Canteiro”. A partir do ano 2000 a situação começa a mudar. Ricardo Diogo explica que a partir daí foi possível “o engarrafamento da categoria ‘Colheita’ feita a partir daquela casta. Eu e outros produtores começámos a lançar vinhos das Colheitas de 1995 aos quais se seguiram outros anos, porém sempre sem autorização de indicação da casta no rótulo.”

Esta situação só seria alterada em 2015, quando a Tinta Negra passou de casta autorizada a recomendada, o que permite ser comercializada como Frasqueira (vintage), que é a menção reservada ao vinho com indicação do ano de colheita, da casta recomendada e produzido pelo processo de canteiro, com envelhecimento mínimo de 20 anos em madeira e que apresente caraterísticas destacadas.

Francisco Albuquerque, enólogo da Madeira Wine, refere que a partir do momento em que passou a ser possível pôr o nome no rótulo e associar uma data, “tornou-se aliciante envelhecer Tinta Negra para depois vendê-la como Frasqueira e Colheita”.

Durante muitos anos era chamada de Tinta Negra Mole. Mas Juan Teixeira explica que “havia uma confusão muito grande, pois o Algarve tinha uma Negra Mole e nós tínhamos Tinta Negra Mole”. Em 2012 foram feitas reclassificações com base em estudos de ADN que permitiram concluir que se trata de castas diferentes.

Francisco Albuquerque contribuiu para a clarificação, encomendando um estudo que permitiu concluir que esta variedade deriva da casta Molar, da região de Colares, em Sintra. Foi introduzida inicialmente no Porto Santo, no século XVIII, pois “produzia muito bem em solos pobres ou em areias. Os agricultores ao trazerem essa casta para solos muito ricos como os nossos, cheios de matéria orgânica, começaram a ver que a Tinta Negra dava muitos quilos por metro quadrado”.

A quantidade da produção e a resistência permitiram-lhe sobreviver e ser vital para a produção de Vinho Madeira. Em 1852, perante a destruição das vinhas por uma praga de oídio, a solução passou por híbridos americanos e da casta Tinta Negra que têm maior resistência a doenças. Em 1872, surge outra praga, de filoxera e uma vez mais o regresso à normalidade passou pela plantação da casta Tinta Negra e de híbridos americanos.

Francisco Albuquerque explica que a “Tinta Negra, como está implícito no nome, é Tinta. Todas as outras castas tradicionais da Madeira são brancas, à exceção do Bastardo que não é branco nem é tinto, mas sim rosé.” Em comparação com as restantes castas, os seus aromas primários florais e frutados são diferentes. Além disso apresenta boas condições de evolução e concentração no envelhecimento em pipas.

Ao contrário das outras castas, a Tinta Negra produz bem em latada e em várias altitudes. No Estreito de Câmara de Lobos é predominante. No livro Madeira, The Island Vineyard, Noel Cossart descreve-a como tendo uvas pequenas, macias e pretas, com polpa esverdeada, que crescem em cachos pequenos ou médios. O vinho possui uma tonalidade nitidamente avermelhada quando jovem, amadurecendo a tawny com a idade.

A quantidade da produção permite muito por onde escolher. Juan Teixeira acrescenta que como é uma casta mais versátil “há uma profusão de lotes muito grandes, em comparação com as castas brancas”. Ricardo Barbeito destaca que “o critério de escolha de um vinho passa sempre pela ideia que já temos para o lote que queremos ou para a categoria que pretendemos engarrafar.”

Mas se a Tinta Negra passou a ser uma casta recomendada, como vão os enólogos fazer os vinhos de três e cinco anos? Francisco Albuquerque responde que é o mercado que vai decidir: “Supondo que há uma grande procura de Tinta Negra com certeza que o preço das uvas vai subir de tal maneira. Como consequência, as outras castas passariam a ser usadas nos vinhos de 3 anos”. Mas Juan Teixeira não vê esse cenário para breve: “A Tinta Negra fará sempre os vinhos básicos da Madeira.” Ricardo Diogo concorda.

Estas três produtoras têm vindo a lançar vinhos Colheita e Frasqueira feitos com esta casta. Na Madeira Wine Company, o Tinta Negra 1995 da Leacock’s foi distinguido com bronze no International Wine & Spirit Competition 2017. Há também o Tinta Negra 1996 da Miles, o Colheita 2006 da Miles e o Leacock’s Tinta Negra 2001. Este último, com uma produção de 2.232 garrafas, conquistou uma medalha de ouro na edição de 2018 do International Wine & Spirit Competition.

A Justino’s lançou Colheita 95, 96, 97, 98 e 99, todos da categoria doce. Na International Wine Challenge de 2012 foram distinguidas as Colheitas de 95 e 99 com medalhas de ouro. Mais recentemente, a Colheita de 98 recebeu a medalha de bronze na International Wine Challenge 2015. Na Decanter World Wine Awards 2017, a Colheita de 96 foi reconhecida com medalha de ouro.

A Barbeitos colocou no mercado o Tinta Negra 1999 Single Cask 252 D+E – Meio Doce, que arrecadou uma medalha de Ouro na International Wine & Spirits Competition 2016 e a medalha de prata no Decanter World Wine Awards 2015. Já o Tinta Negra 1997 Single Cask 114 B+E – Meio Doce foi distinguido com medalhas de prata no Decanter World Wine Awards 2015 e no International Wine Challenge 2015, enquanto o Tinta Negra 20 Anos Ribeiro Real, engarrafado em Julho de 2016, num total de apenas 1.183 garrafas, integra a lista dos dez melhores vinhos portugueses feita pela crítica internacional Jancis Robinson.